Viver é bom?
Esses dias me perguntaram se eu, enquanto psicanalista, achava que viver era bom. Achei uma pergunta boa, e me atrevo agora a tentar responder.
Viver, assim como fazer análise, não é um troço bom. Calma, este não é um texto pessimista, é apenas uma comparação da vida com o processo analítico. Fazer análise é pagar para ver uns demônios, olhar de frente para o espelho, com medo e sem máscaras. Depois de um tempo, sabe-se lá quanto, pode ser que tudo adquira uma leveza antes desconhecida, que na verdade vem porque a gente decide e trabalha para carregar o menor peso possível (menos ideais, menos projeções, menos narcisismo...). Assim como a vida, que não é só boa ou só ruim, mas feita das duas coisas: matéria perecível e eterna, insignificante e magnífica, a análise não é a vida toda, não é o todo, mas apenas um jeito de procurar a (in)coerência em nós. É apenas UM dos jeitos.
A psicanálise não é a totalidade, porque nada é, porque a palavra não dá conta de tudo, e nem quer dar. A retrospectiva do inconsciente não dá ibope, não vale um milhão de dólares. A vida não é um instante, “carpe diem” é ilusório, a semana recomeça e os boletos vencem, a dieta sai do prumo, ainda que seja por um bom motivo. “A gente - essas tristezas”, como disse Guimarães Rosa. A gente, esse poço de inconstâncias, dores, alegrias, mal entendidos. Não somos um cartão de natal musical, e a vida é esse transtorno mental não catalogado.
Por isso, cada vez mais acredito que são as oscilações que produzem equilíbrio, que é a corda bamba que não nos deixa cair pra sempre, e não o contrário. Talvez a análise sirva para que a gente tenha espaço e aprenda a abrir espaço em nós para falar. "Quem diz é são", disse Comte-Sponville, por isso eu digo. Falar talvez seja a saída, falar "o que vem à cabeça", porque em algum momento pode ser que as falas perdidas e desconexas encontrem sentido, e então o sentido nos encontra e a vida fica mais prazerosa, a gente quer bolo de chocolate e come bolo de chocolate, a gente quer abraçar e abraça. E aí sente aquela sensaçãozinha boa em estar vivo, a brisa fresca da tarde bate no rosto e... Na mesma medida, a gente odeia ir à academia, mas vai, odeia aquele parente mas deseja um ano novo maravilhoso, faz promessa e não cumpre, come sete uvas, faz yoga e no dia seguinte tem vontade de cuspir na humanidade inteira. Viver não é bom? Não sei, mas viver é tudo isso, ser humano é tudo isso. Bom mesmo talvez seja estar em paz com as próprias contradições e não ansiar pela nota "10" na avaliação imaginária que esperamos que o outro faça da gente.
No fim, viver é bom quando a gente pode estar próximo da verdade: essa, de v minúsculo, essa pequenina, nossa. Como pérola que não reluz, mas ainda assim é ouro. Quando a gente consegue uma vida um pouco mais coerente com o próprio desejo. Uma vida um pouco mais florida, risível, vivível. E é justamente pra isso que a gente falha, que a gente fala da gente, e dessa gente toda que habita em nós. Não é tudo, tampouco é pouco. Não é maravilhoso, tampouco é ridículo. É apenas o que é, assim como a vida: sem mistérios, misticismos e ilusões. Bonita logo ao acordar sem maquiagem, e também bonita quando se arruma para sair, e veste o que parcelou em sete vezes no cartão mas só vai começar a pagar em março do ano que vem. Feliz ano novo.