Um espaço para a dor
Se é do chão que saímos quando levantamos, por que não enaltecer os pequenos passos ou o passo desajeitado de quem está reaprendendo a andar sob os próprios pés?
Manuela Pérgola
O mundo não está “criando” pessoas para lidar com sentimentos. Talvez nunca tenha criado. Desde crianças somos ensinados a engolir o choro. Não à toa engolir sapo tenha se tornado uma expressão corrente em nossa língua. Quando caíamos, escutávamos “opa! não foi nada! não doeu! não chore!”, numa súplica desesperada da pessoa adulta ao nosso lado. “Por favor, não chore, eu não saberia o que fazer” poderia ser uma tradução para o pedido angustiante da pessoa adulta que vê uma criança cair.
Quando crescemos, continuamos caindo. E seguimos escutando da maior parte das pessoas que caminham ao nosso lado: “opa! não foi nada! não doeu! não chore!”. Não aprendemos nada sobre as quedas. E talvez o desespero caia bem em todo mundo: nas pessoas que já caíram e conhecem a dor, nas que temem cair e não conseguir levantar, nas que julgam quem cai, nas que já caíram e se levantaram – e por isso acham que o que serviu para elas servirá a qualquer pessoa.
Não tendo aprendido a lidar com a dor da própria queda, como lidar com a queda alheia? Não restam muitas opções, a não ser fingir que nada está acontecendo, fingir que não é tão grave assim, ou pior: dizer que se trata de uma fraqueza (ou frescura) e que “basta” força de vontade para levantar, sacodir a poeira e dar a volta por cima. Abro parênteses: acho engraçada essa expressão. Por que não é possível dar a volta por baixo? Se é do chão que saímos quando levantamos, por que não enaltecer os pequenos passos ou o passo desajeitado de quem está reaprendendo a andar sob os próprios pés?
Sem ter o espaço em si para a queda, o hiato, o mal-estar ou até mesmo a tristeza, é muito difícil abrir espaço para alguém que esteja em sofrimento. As campanhas do setembro amarelo talvez sejam inúteis aí: para conscientizar as pessoas sobre saúde mental, é preciso ensiná-las sobre saúde mental. A reconhecer seus sentimentos, emoções, pensamentos e ações mesmo quando parecem estar fora de contexto, desproporcionais ou forem esquisitos ao ponto de não poder ser compartilhados. Reconhecer é entender como lidamos com os “baixos” da vida, com a dor, o luto, ou, para ser didática, com os “sentimentos difíceis”. Se não pudermos olhar para a forma como encaramos a gente – essas tristezas*, não poderemos dar a mão a alguém que está enfrentando problemas de saúde mental. É sabido que os laços, as conexões, as amizades, as pessoas que amamos são parte fundamental para a recuperação, seja de um estado depressivo, um luto ou uma condição de saúde no geral.
Se precisamos tanto dos outros e não encontramos espaço para dividir nossas quedas, o que resta é a solidão e o isolamento, estados que acabam incrementando o sofrimento e dificultando que nos levantemos do chão. Afinal, receber “uma mãozinha” para levantar é necessário, ainda que estejamos no chão por acidente.
Dizer para alguém em sofrimento “não chore” é diferente de dizer “vá em frente, chore o quanto precisar” e não fazer nada. Antes de qualquer coisa, é preciso suportar o choro. Daí, sim, oferecer um lenço, um ombro, os ouvidos. Talvez as palavras nem sejam tão necessárias nesse ponto. O “choro” pode cessar “só” ao receber o espaço que merece. O curioso é que aprendemos justamente o contrário: se a criança que cai recebe muita atenção por ter caído, aí sim vai chorar muito. Temos que dizer “não foi nada” ou “passou, passou”. Mas como decidir dar ou não atenção, ou mesmo dizer alguma coisa, se não sabemos se alguém se machucou de verdade? Parece bobo, não é? Mas na tentativa de oferecer muito, nos atrapalhamos e interrompemos um processo que precisa acontecer, uma fala prestes a sair da boca, ou, no caso da criança que cai, o levantar sozinha e continuar andando. Precisamos, às vezes, aprender a calar a boca e escutar: a criança que cai e a pessoa adulta que sofre.
Estar junto é poderoso, quando não significa indiferença com o estado alheio: nos oferecemos para acompanhar a dor do outro, checar se está se alimentando, tomando banho ou se precisa de um chá. Mas esse pouco pode parecer muito para um mundo que tem criado estratégias desumanas e individualistas para lidar com o sofrimento, e dia após dia acompanhamos as consequências disso: crescimento dos casos de depressão, ansiedade, solidão, suicídio. Como pode sermos tantos e estarmos tão sozinhos? A gente precisa da gente, é urgente. Escrevi isso essa semana. Deixo aqui registrado essas reflexões que têm me acompanhado há um tempo, na esperança de que possamos refletir juntos.
*(Guimarães Rosa)