OsS.O.S do ofício

uma breve reflexão desses 12 anos de clínica

Manuela Pérgola

5/17/20245 min read

Esse ano completo 12 anos de prática clínica. Não é possível dizer o quanto aprendi - o aprendizado não é algo que se possa quantificar, enumerar. Eu até poderia, mas não é meu intuito aqui.
A clínica, com todos os seus aprendizados, belezas, surpresas, hoje tem me trazido muito cansaço. E não falo do cansaço físico, de passar horas sentada, ou com a cabeça curvada, lendo, pensando, escrevendo. Não falo do cansaço mental, muito comum no fim de um dia ou de uma semana. É um outro tipo de cansaço, que aqui vou nomear de 'cansaço sistêmico'. Não procurem esse termo no google, pois acabei de inventá-lo. Estou usando o termo "sistêmico" para dizer de algo que diz respeito a outra coisa, e agora não é do inconsciente que estou falando quando me refiro à "outra coisa".

Em 2012, quando comecei a atender, era comum que pessoas ligassem ("alô, quem fala?", lembram?) para agendar suas sessões. Enviavam mensagem SMS para qualquer outro aviso urgente.
Os encontros eram apenas presenciais. Eu via e escutava com o corpo, era vista e escutada com o corpo das pessoas que se sentavam na minha frente. Via essas pessoas com suas roupas de trabalho, com o que costumam chamar "defeitos congênitos", com seus tiques, pernas ansiosas que mexiam sem parar ou mãos que tamborilavam no sofá. Via essas pessoas apertar as almofadas, chegar atrasadas ou adiantadas e ia buscá-las na sala de espera, lugar onde "a palavra saliva", como já escrevi certa vez. Também passava por isso em minha própria análise, e ficava imaginando o que acontecia nos "bastidores", enquanto minha analista não abria a porta para me chamar para entrar.

É preciso, por vezes, lembrar que "por trás" do trabalho clínico há um ser humano, que tem uma vida, contas a pagar, perrengues, sofrimentos.
É preciso lembrar que não fazemos nosso trabalho por caridade, mas que estabelecemos relações mediadas pelo dinheiro, porque este é o equivalente geral no sistema econômico capitalista; ou então, vendemos nossa força de trabalho, se trabalhamos em clínicas de convênio, por exemplo. Seja como for, precisamos de dinheiro para pagar as contas e, com sorte, ter tempo para viver e cultivar afetos, como uma minoria em nosso país pode fazer. É preciso lembrar disso.

É preciso lembrar que precisamos de férias e descanso aos finais de semana e feriados. Não somos socorristas, não trabalhamos em urgências ou emergências, não aliviamos o sofrimento em uma sessão e não trazemos o seu amor de volta em 7 dias ou o seu dinheiro de volta.
Na verdade, uma análise nos faria questionar: por que a pressa em liquidar o sofrimento imediatamente após o momento em que ele aparece? E sim, é preciso um investimento, material e emocional, para enfrentar uma análise. Não vou discutir esse aspecto nesse texto.

Os tempos mudaram. No meio do caminho (e de um governo fascista), vivemos uma pandemia, com todas as suas consequências desastrosas e horríveis.
Os atendimentos passaram a ocorrer na modalidade online. Antes disso, nasceu o whatsapp, recurso digital que rompeu as barreiras do tempo de descanso, da noção e dos limites. Com ele, vimos profissionais de todas as áreas serem demandados à noite, de madrugada, aos finais de semana, feriados, férias. Agora é possível saber quem está online - e isso virou sinônimo de estar disponível - e quem lê nossas mensagens - e a que horas o faz.
Enquanto tudo isso acontece, o modo como nos relacionamos vai se transformando, aos poucos e, ao mesmo tempo, muito rápido. Agora é quase impossível ser "anônimo", não possuir conta em alguma rede social, não passar metade do dia com a cervical curvada e os dedos numa tela de celular.

O senso de comunidade e ajuda mútua foi se tornando escasso, os laços muito frágeis, as pessoas viraram objetos, as relações se tornaram competições.
O sistema neoliberal não prioriza reflexões sobre os modos de ser e estar no mundo - pois como dizia Raul Seixas, "duas cabeças pensando juntas pode ser muito arriscado" - e produz, cada vez mais, pessoas "iguais": individualistas, produtivistas, consumistas. O consumo se tornou o modo corrente de viver, e não há mais o interesse pelas perguntas: o que nos faz felizes? O que buscamos? Por que e por quem vivemos?

Obviamente o trabalho clínico é afetado por isso.
No famoso whatsapp, pessoas não acham mais necessário se apresentar, dizer "bom dia, boa tarde" antes de enviar suas mensagens: apenas digitam "oi" e esperam por alguma resposta automática que apresente as possibilidades em apenas um clique.
As perguntas enviadas esperam respostas imediatas, e caso isso não aconteça, adeus, caem fora.
Os consumidores estão esperando pela melhor oferta para darem seu lance. A lógica é a do mercado.

Nesse ínterim, é preciso lembrar muitas coisas.
O modo como tratamos as pessoas revela a maneira de enxergar as relações e o entendimento sobre nosso lugar no mundo. Ninguém é amiga da terapeuta, mas é uma relação tão íntima quanto uma amizade. Ninguém se relaciona amorosamente com a terapeuta, mas há algo de amoroso ali.
Temos que lembrar que esses modos de se relacionar não estão ligados apenas ao aspecto individual, mas ao sistema em que vivemos. Tratamos esses profissionais como o sistema nos ensina a tratar: "minha satisfação total ou meu dinheiro de volta"; eficácia e produtividade se tornam palavras de ordem. "Quero minha cura já!". "Quero me ver livre dos meus sintomas, dos meus fracassos".

Mas uma análise não se trata de liberar alguém de seus sintomas. "A análise consiste em que se saiba porque se está enredado nisso". A frase não é minha, é de um psicanalista francês chamado Jacques Lacan, um metido a besta que falou algumas coisas importantes em relação ao dispositivo da análise.

Nesses 12 anos de clínica, muita coisa aconteceu. Tive períodos de trabalho mais intenso, outros menos. Períodos que acompanharam minhas fases de vida pessoal. Nesses 12 anos, não estive sem trabalhar com a clínica por mais de um mês, ou seja, foram 12 anos ininterruptos. 

Estou aqui, em um momento totalmente novo, ainda entendendo o que fazer com o que tem surgido. Entre desencantos e cansaços, meu trabalho na clínica continua sendo minha paixão, e me fascina enxergar os efeitos disso na minha vida e na vida das pessoas que acompanho. Uma das minhas frases favoritas, que tenho bordada por uma grande amiga, é a do filme argentino "O segredo dos seus olhos", que diz: "El tipo puede cambiar de todo: cambiar de cara, de casa, de familia, de novia, de religión, de Dios. Pero hay una cosa que no puede cambiar: no puede cambiar de passión".

A clínica me serve como um colete salva-vidas: ainda que eu me sinta em um barquinho frágil em meio à tempestade - e tenha que retirar a água que inunda o barquinho com um copo - sigo remando, adiante, contra a maré que insiste em nos tornar reféns.

Sigo, com desejo de saber, de escutar, de tornar a vida das pessoas que acompanho menos sofridas, mais interessantes. Refletir sobre nosso lugar no mundo pode trazer desconforto, frustração e impotência, mas desconheço outro caminho para uma vida mais livre e, quem sabe, feliz.