janelas
gostamos das esperas. não gostamos das partidas. às vezes não sabemos aproveitar os durantes, e então nos arrependemos. às vezes não sabemos aproveitar boa parte da vida – a parte boa da vida -, e então nos ressentimos.
Manuela Pérgola
5/8/20241 min read
enquanto passava o café, a vida passava. eu esperava os pingos escorrerem pelo coador. pela janela da cozinha, via outras janelas. janelas com as quais eu não tinha nenhuma, ou quase nenhuma, familiaridade. moramos todos num mesmo lugar mas não nos conhecemos, nem sabemos se é possível pedir ajuda a uma dessas pessoas, caso seja necessário. esperamos que não seja.
pela janela da cozinha, via as janelas:
da senhora branca, sentada, com seus cabelos finos e ralos, conversando com a empregada, preta, de pé (nunca sentava).
a dos vizinhos que aguardavam a chegada do primeiro filho, ou filha. a mulher, de semblante delicado e traços finos, com um barrigão circulando pelo apartamento. o homem que agora havia aparado os cabelos cacheados.
fora isso, os interfones, as campainhas, os choros das crianças (os adultos choram escondido e quase nunca se escuta), os gritos dos casais enquanto transam, enquanto brigam, o homem que fala alto ao telefone, a mulher que chega bêbada e grita, o homem que chega bêbado mas vai dormir.
são tantas coisas que acontecem. tantas vidas que acontecem. e tantas mortes também. a vida é esse emaranhado. gosto dessa palavra. emaranhado. enroscamo-nos uns aos outros na esperança de fazer surgir um sentido, um sorriso, uma espera. gostamos das esperas. não gostamos das partidas. às vezes não sabemos aproveitar os durantes, e então nos arrependemos. às vezes não sabemos aproveitar boa parte da vida – a parte boa da vida -, e então nos ressentimos. esse, para mim, é o pior. se fosse religiosa pediria a deus todos os dias que eu nunca me ressentisse. que eu nunca me culpasse. pediria a deus que me desculpasse por pedir isso, também. a vida, essa grande quantidade de pedidos. deus queira que nunca se realizem, porque assim continuamos esperando. e nós gostamos das esperas.