alegria difícil

Manuela Pérgola

2/27/2024

Estamos acostumados com a insatisfação. Porque ela existe, claro. Porque vivemos em um mundo neoliberal, óbvio. Mas eu às vezes me pergunto: o que fazer? A mudança é um processo, o dinheiro não nos alcança, o tempo nos atropela… Entre tantas, tantas coisas que tornam a vida difícil. É quase impossível alcançar a felicidade. A alegria. O contentamento consigo mesmo. Se orgulhar das próprias conquistas, dos “eu dei conta”, porque para cada conquista contamos dez fracassos.

Estamos acostumados a sentir falta: de algo, de alguém, de uma coisa. Tem aquele livro que não escrevi. Aquele abraço que não dei. Aquela mágoa antiga. Aquele amor antigo. Um verdadeiro muro de lamentações.

Passei um tempo me dedicando a escrever nesse muro. E depois um tempo lendo tudo o que escrevi, e ainda mais um tempo sofrendo por cada pedaço que havia deixado ali. Se a vida já era difícil sem todo esse peso, ficou mais difícil ainda. Tive tempo para contemplar a tristeza, que chegou de mansinho. Depois não era mais contemplação, virou algo muito maior que eu, algo que eu não podia encarar. Então me encolhi, e fui diminuindo, diminuindo… até ficar quase invisível.

O processo de entristecimento é diferente para cada pessoa. O processo de trabalhar nosso entristecimento é complexo, lento, envolve muitas outras coisas. Precisamos de pessoas: que possam nos pegar pela mão, ajudar, mesmo. Mas como nem sempre temos força para estender a mão, precisamos de pessoas que possam nos emprestar forças. Alguém que nos empreste esperança.

De repente, pode ser que a gente comece a se sentir melhor, ainda que “melhor” signifique “menos pior”. Mesmo assim, quando a alegria chega sorrateira e dá três suaves batidas na porta da frente, temos dificuldade de abrir. Como se fosse uma coisa da qual deveríamos desconfiar. Olhamos para os lados, levando no rosto uma expressão ressabiada, para checar se é para nós mesmos que ela está acenando.

A vida não pode ser só boa ou ruim, e não pode ser diferente disso. Mas ela é boa de um modo paradoxal: na medida em que nos coloca em contato com os sentimentos “negativos”, com a tristeza, os cacos de nós mesmos e com a falta de alguma coisa. Sentir alegria não é apenas sorrir sem motivo aparente. Está também nas pequenas-grandes coisas, que demoramos a conquistar, como aprender a aceitar elogios e a nos vangloriar, sem falsas modéstias. Sem ser arrogante, dizer “sim, eu mereço”. Se orgulhar por pequeninos feitos: ter conseguido se exercitar, caminhar ou preparar o almoço, ter conseguido ligar para uma amiga; e também pelos grandiosos, depende do que é “grande” para você. Por mais que muitas coisas ainda façam falta, ainda que as coisas não estejam como a gente quer, é preciso aprender a alegria. Apreendê-la. Isso me fez lembrar de um trecho da música do grande Luiz Tatit, “Felicidade”:

Não sei porque eu tô tão feliz

E já nem sei se é necessário ter um bom motivo

A busca de uma razão me deu dor de cabeça, acabou comigo

Enfim, eu já tentei de tudo, enfim eu quis ser consequente

Mas desisti, vou ser feliz pra sempre.

A tristeza, às vezes, não precisa de um bom motivo. “Sei lá, eu só estou triste”, e pronto. Basta. Com a alegria é diferente: “Diacho, por que será que estou tão feliz? Não aconteceu nada!”. Pobre alegria, relegada ao descrédito, nunca parece ser crível. Ou esse outro clássico: “Parece que algo de muito ruim vai acontecer, está tudo muito bom pra ser verdade. Temos medo das coisas darem certo. Já ouviram coisa mais esquisita? Como é possível ter medo de uma coisa boa? Não deveria ser o contrário?

Estamos vivos. Temos potências de ser sempre mais do que somos. Podemos nos transgredir. We can be heroes, como disse Bowie. É que disfarçamos nossos super poderes. O super poder de acordar assim que o despertador toca e ir trabalhar, de cozinhar, de se relacionar, de ser. Ao invés disso, o mundo em que vivemos nos incita a produzir, ter, consumir, expor.

Mas é importante lembrar que o percurso de cada pessoa precisa ser construído, o percurso que nos faz refletir sobre o papel da tristeza e da alegria em nossas vidas. Para mim, é como se estivesse em um buffet, e fosse muito fácil me servir da tristeza. Sempre fui mais familiarizada com a tristeza do que com a alegria e, portanto, a cada entristecimento preciso lembrar de abrir a porta, com toda a cafonice que isso exige, para a alegria. Aprender a variar o cardápio e me servir de alegria, vez ou outra.

Clarice Lispector escreve em seu livro “A paixão segundo G.H.”: Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria feliz se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.

Uma vez escutei em uma série a seguinte frase: “é preciso aprender a viver como se já tivesse o que quer”. E isso foi tão importante! Me fez entender que a alegria “nada tira de ninguém“.

Talvez a alegria seja difícil porque nos coloca em contato com o avesso dela, e com o avesso do avesso do avesso. E isto é, também, parte de quem somos.