A "síndrome de raio-x"

Então, cabe ao “raio-x” processar o mal estar, a angústia, algum silêncio desconfortável e nomear isso de alguma forma para que se torne digerível, tolerável. É como uma tradução simultânea, só que de sentimentos.

Manuela Pérgola

4/4/20255 min read

No trabalho com a clínica, há uma queixa que nunca deixa de aparecer, cedo ou tarde: a família. Para algumas pessoas isso aparece logo no início do tratamento, com pedidos como “quero melhorar a relação com meu pai”; para outras, o tema pode levar meses e até anos para ser abordado, sendo tratado de modo superficial como “me dou bem com a minha família”. Fato é que as pessoas vêm falar de seus sofrimentos em relação a uma ou várias pessoas com quem convivem, seja na mesma casa ou não. Sempre me intrigou bastante isso: escutar alguém contar, às vezes detalhadamente, de sua percepção sobre uma outra pessoa, que não está presente, nesse lugar tão especializado para falar de si como a terapia. Por isso, para nós, analistas, é como se conhecêssemos as famílias das pacientes, porque ninguém vem para a clínica desacompanhada(o).

É impossível falar de nós sem incluir o outro, afinal, somos quem somos pela soma de interações com outros significativos para nós, sobretudo na infância, e continuamos a nos trans-formar à medida que outras pessoas vão entrando em nossas vidas, fazendo parte do tecido que nos compõe, que nos ajuda a interpretar o mundo, os sentimentos, as pessoas…

Muitas vezes sentindo-se solitárias, as pacientes esforçam-se para descrever, da maneira mais fiel que conseguem, quem é esse Outro que as atormenta, desrespeita, não as escuta, violenta, negligencia, etc. e nenhuma explicação parece ser suficiente. Muitas vezes, buscam entender os motivos da relação ser como é, ter sido como foi, e tentam construir estratégias para que seja de uma determinada forma no futuro, muitas vezes sem sucesso. Buscam entender porque se afetam tanto com o que esse Outro diz e não diz, pois têm a impressão de que suas vidas estão amarradas e enraizadas às dessa(s) pessoa(s) de tal forma que sentem que não conseguirão se desvencilhar. Acham que, quando for possível compreender porque se afetam, poderão deixar de se afetar, e isso na maior parte dos casos é uma ilusão. Somos afetadas(os) por esses Outros justamente porque somos constituídas(os) por eles.

Às vezes são necessários muitos e muitos anos para desentender certas coisas. Vamos para a terapia buscando entender determinadas coisas e no processo descobrimos que as coisas são indeterminadas, terminamos nos permitindo fazer perguntas que nunca antes havíamos nos permitido e de repente as coisas parecem estar do avesso, ou de cabeça para baixo: aquilo que achávamos que era, não só não é como é uma outra coisa que nunca imaginamos que poderia ser. As “respostas” só aparecem no processo, no durante, nessa travessia de um trabalho de análise, quando nos permitimos nos despir de algumas certezas e vestir temporariamente algumas dúvidas. Quando encaramos de frente as nossas questões.

Geralmente, quando trabalhamos com a terapia individual, a pessoa mais saudável da família é quem vem procurar ajuda profissional. Ou seja, apesar da cegueira própria ao adoecimento psíquico, foi possível enxergar que algo não ia bem.

Pode acontecer dessa pessoa (que vem buscar a ajuda profissional) ter um papel na dinâmica familiar que irei chamar aqui de “raio-x”: é a pessoa que costuma metabolizar, elaborar, processar e traduzir os sentimentos e as situações familiares que não são trabalhadas no interior da família, por cada um(a). Cabe ao “raio-x” processar o mal estar, a angústia, algum silêncio desconfortável e nomear isso de alguma forma para que se torne digerível, tolerável. É como uma tradução simultânea, só que de sentimentos. Dou um exemplo: em uma família x, há a tradição de almoçar juntos todo domingo. Nos últimos meses, em quase todo almoço, o pai costuma fazer um comentário agressivo em relação ao cunhado, que está desempregado. O “clima” sempre pesa, e todos ficam em silêncio. O cunhado, que está acima do peso, acaba comendo mais do que precisa, e o pai se fecha para qualquer outra conversa em sua própria agressividade, como de costume. O membro “raio-x” da família sente essa tensão e tenta, imediatamente ou não, “resolver” a situação:

  1. pode fazer um comentário logo em seguida, tentando “quebrar o gelo” e restabelecer a “paz”;

  2. percebe que o tio está “descontando” suas emoções na comida e fica imaginando o quanto deve ser doloroso para ele, pensa em como ajudá-lo e em formas de dizer isso a ele;

  3. se preocupa com o pai, que é muito fechado e não expressa seus sentimentos, e teme que algo lhe aconteça, como um infarto ou um AVC, pensa em como ajudá-lo, sem abordar o assunto diretamente.

Enquanto a maioria das outras pessoas viveu um momento de uma pequena tensão, mal estar ou desentendimento, a pessoa raio-x é capturada pela situação, buscando entender o que levou as pessoas a agir do modo como agiram.

O raio-x costuma ser sensível e empática(o), às vezes tem o comportamento de uma “esponja”, pois capta todos os sentimentos para si e tenta processá-los, a fim de compreender o que acontece, uma vez que a família não tem maturidade e ferramentas para reflexão e resolução dos pontos de dificuldade ou tensão (as chamadas “famílias disfuncionais”).

O problema é que o papel de raio-x pode ser bem desempenhado durante muitos e muitos anos sem que a própria pessoa se dê conta disso. Aprende-se a normalizar os sinais que o próprio corpo envia, e não é raro encontrar nessas pessoas o desenvolvimento de doenças autoimunes, distúrbios do sono, enxaqueca, ansiedade e depressão.

O raio-x costuma sentir isolamento, uma sensação de incompreensão e, muitas vezes, se questiona se realmente está fazendo o suficiente, principalmente quando percebe que os problemas não se resolvem, mas se repetem. O raio x acha que é sua a responsabilidade de metabolizar os sentimentos não ditos, as palavras mal-ditas, os silêncios intermináveis. Dependendo da dinâmica familiar, acha que é sua responsabilidade unir a família, aceitar as violências, não interromper os abusos e nunca falar sobre seus próprios incômodos, pois apesar de sentir muito, são pessoas que costumam expressar pouco o que sentem e, por isso, carregam consigo um grande acúmulo emocional.

Com esse cenário não é difícil adivinhar o resultado: o raio-x acaba exausto(a) (já está exausto há muito tempo, mas continua aguentando), angustiado(a), silenciado(a), deprimido(a). O que se encontra na clínica é alguém que mal consegue abrir a boca para falar, tamanho cansaço, tamanha exaustão. Há todo um trabalho, longo e árduo para que o “raio-x” consiga se demitir desse cargo de “tradutor de sentimentos”, para que consiga se libertar da carga que acumulou durante a vida e aprender a carregar apenas a sua bagagem, sem excessos. Em suma, nesses casos é preciso resgatar a leveza da vida, reencontrar a paz há muito perdida, reaprender a alegria do descanso sem culpa, esvaziar a cabeça das tantas vozes que dizem que “jamais será possível descansar, porque nem todos estão curados”. É preciso aprender que só podemos curar a nós mesmas, e olhe lá. Cada um(a) precisa reconhecer a sua dor e aprender a cuidar dela. É claro que as pessoas ao redor, a família (em alguns casos) pode ajudar nesse processo, mas ninguém pode carregar nossa bagagem. Da mesma forma, não podemos carregar o peso da vida do outro, assumir suas culpas, assinar em seu nome. Em alguns casos, é preciso descumprir aquilo que esperavam de nós.

E, nos casos em que a família é um ambiente extremamente ansiogênico e tóxico, é preciso aprender a desocupar certos espaços. Compreender que alguns laços precisam ser desfeitos para reencontrar a saúde mental. Cabe a nós arrumar a enorme “bagunça” que fizemos tentando consertar bagunças que não eram nossas.